sábado, 1 de junho de 2013


Dançar, Verbo Intransitivo

                                                    Foto Armando Gamboa


            O despertador toca, anunciando a hora de acordar. Fernando prepara-se para mais um dia de aulas de ballet, e aulas na escola.  Esta rotina se repete desde que tinha cinco anos de idade, quando começou a estudar dança. No início era uma alternativa terapêutica aos “pés tortos” que Fernando tinha. O obrigando, inclusive, a usar botas corretivas. O que a princípio era uma necessidade, foi aos poucos se transformando em uma paixão.
            A paixão e o amor pela dança proporcionavam-lhe, como a paixão e o amor por outrem, prazer e dor. A dor física causada por muitos exercícios de alongamento e as infinitas repetições de movimentos, e a dor na alma, causada pelas dificuldades de relacionamentos com parte do grupo de alunos devido a sua origem: negro e favelado. Nosso protagonista aprendeu muito cedo o significado da palavra diferença.
Difícil mensurar o que doía mais, as enormes assaduras entre as pernas e virilhas, as bolhas nos pés; ou a maneira como era discriminado pelos colegas. Na década de 80 ainda não havia se popularizado o termo bullyng, hoje utilizado amplamente para caracterizar a perseguição a que algumas pessoas são submetidas, principalmente no ambiente escolar. Mas acredite, ele era vítima de bullyng. Único negro da classe, Fernando era o queridinho dos professores, por sua educação e talento, em contrapartida era alvo da inveja e do preconceito dos colegas.
            Mas o prazer de conhecer os limites do seu corpo e de ter seu talento reconhecido pelos mestres o fez perseverar e levar a frente a sua formação de bailarino. No palco estava sempre em posição de destaque, retinto, era um ponto negro em uma imensidão branca. Mas como já foi dito, ele não se destacava apenas pela cor, Fernando possuía um talento inconteste, que talvez passasse despercebido não fosse a necessidade terapêutica. Concomitantemente ao ballet iniciou aulas de sapateado, mas o clássico ainda era a sua grande paixão. De baixa estatura, no palco agigantava-se e impressionava pelas expressões corporal e facial, tocando a todos com a sua leveza, seu porte e capacidade de interpretar e dar sentido sem palavras. Seu corpo falava. Aos oito anos conquistou seu primeiro prêmio, e reconhecimento público do seu talento, com o espetáculo “O Vagalume Solitário”. Foi premiado em uma montagem de “A Megera Domada”, mais uma vez como segundo melhor bailarino.
            Podemos crer que o prazer e a necessidade de diversificar sua formação, eram maiores que as dores físicas e as causadas pelo preconceito. Já que aos doze anos de idade, decide alçar novos voos. Aceitando um convite, ele se afasta do ballet clássico e passa a estudar jazz e afro. A dança afro transformou-se na sua grande paixão e foi com ela que teve maior reconhecimento e alegrias. Numa sociedade ocidental influenciada diretamente pela cultura europeia, ele se redescobriu e se reinventou com contato com a cultura africana. Era parte de sua história e de seus ancestrais apagada pela escravidão, pelo tempo, e pela invisibilidade que estas representações culturais estão submetidas.
            Quando dança com os pés no solo, de olhos fechados, ao som dos atabaques, Fernando volta a sua outra matriz cultural, até então desconhecida. Sem hierarquizar o clássico e o afro são suas grandes paixões. Brasileiro, fruto da mestiçagem, a descoberta do afro não diminuiu sua paixão pelo ballet, mas sim complementou a sua formação cultural multifacetada e hibrida. São tradições distintas que não se contrapõem, mas antes disso, se complementam neste indivíduo fruto do tempo e do lugar dele.
            Na adolescência passa a integrar uma companhia de dança. Criada em sua comunidade, após uma chacina efetuada pelo braço armado do estado, a polícia militar. Esta companhia lhe proporciona aperfeiçoamento e novas oportunidades, assim como novas premiações. Com este novo grupo viajou, com um espetáculo para várias regiões do país, e próximo há completar vinte anos faz sua primeira turnê internacional, pelo Canadá e vários países europeus: Portugal, Espanha e França. Desta vez como principal bailarino da companhia, com um espetáculo afro “Nova Cara”, que fez muito sucesso. Após receber o convite para se apresentar no Japão, é na Europa que tem seu maior baque. Em uma apresentação no Bataclan, em Paris, fratura a patela e é obrigado a afastar-se de sua grande paixão.
            Tem-se início uma longa e dolorosa recuperação, mas a alma de artista o leva ao teatro, enquanto ainda estava em tratamento. Passa a integrar, como aluno, um grupo de teatro localizado no bairro, mas fora da favela. A expressão corporal que tinha cultivado durante vários anos na dança, agora é colocada a serviço das artes cênicas. Neste momento o artista fala com o corpo e vocaliza nas suas atuações. É uma fase de superação e novas descobertas. Nascem novas paixões: o teatro e os amigos conquistados durante a permanência no grupo. A convivência extrapola o espaço e os vínculos são cada vez mais estreitos, sejam nos ensaios ou apresentações, ou ainda em um acampamento numa praia deserta. Constrói sólidas amizades nos dois grupos que integrou em seu bairro.
Não chega a profissionalizar-se, mas se realiza e também tem seu trabalho reconhecido e premiado. Mesmo como ator amador atuou nos principais teatros da cidade do Rio de Janeiro como os teatros Carlos Gomes, João Caetano e Sesc Tijuca. A inquietação do artista permanece em sua alma e hoje pretende dar um novo sentido à sua arte. Deixar os palcos é algo impensável, mesmo num país onde a cultura é tão desvalorizada, e muitas das vezes o artista é obrigado a ter uma atividade paralela para sustentar-se. O prazer de estar no palco é indescritível e não tem preço. Vale a pena enfrentar preconceitos e dificuldades financeiras para realizar sonhos. Parafraseando o poeta Fernando, o Pessoa:
“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”

  Armando Gamboa

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